Escrito por: Carlos Alberto Di Franco
O ESTADO DE S. PAULO - 18/03
Uma megacobertura. Não há outra palavra para definir o volume de
informação a respeito da Igreja Católica. A surpreendente renúncia de Bento
XVI, os bastidores do conclave, o impacto da eleição do primeiro pontífice da
América Latina e a próxima Jornada Mundial da Juventude, encontro do papa
Francisco com os jovens, em julho no Rio de Janeiro, puseram a Igreja no foco
de todas as pautas.
A cobertura do Vaticano é um case jornalístico que merece uma
análise técnica. Algumas patologias, evidentes para quem tem olhos de ver,
estiveram presentes em certas matérias da imprensa mundial: engajamento
ideológico, escassa especialização e pouco preparo técnico, falta de apuração,
reprodução a crítica de declarações não contrastadas com fontes independentes
e, sobretudo, a fácil concessão ao jornalismo declaratório.
Poucos, por exemplo, se aprofundaram no verdadeiro sentido da renúncia
de Bento XVI e na qualidade de seu legado. O papa emérito, intelectual de
grande estatura e homem de uma humildade que desarma, sempre foi julgado com o
falso molde de um conservadorismo exacerbado. Mas, de fato, foi o grande
promotor da realização do Concilio Vaticano II, o papa que mais avançou no
diálogo com o mundo islâmico, o pontífice que empunhou o bisturi e tratou de
rasgar o tumor das disputas internas de poder e o câncer dos desvios sexuais.
Sua renúncia, um gesto profético e transgressor, foi um ato moderno e
revolucionário. Bento XVI não teve nenhum receio de mostrar ao mundo um papa
exausto e sem condições de governar a Igreja num período complicado e difícil.
Foi sincero. Até o fim. Ao mesmo tempo, sua renúncia produziu um vendaval na
consciência dos cardeais. A decisão, inusual nas plataformas de poder, foi a
chave para o início da urgente e necessária reforma da Igreja. O papa emérito,
conscientemente afastado das bajulações e vaidades humanas e mergulhado na sua
oração, está sendo uma alavanca de renovação da Igreja. Nada disso, no entanto,
apareceu na cobertura da mídia. Faltaram profundidade, análise séria,
documentação. Ficamos, todos, focados nos boatos, nas intrigas, na ausência de
notícia. Falou-se, diariamente, do relatório dos cardeais ao papa emérito
denunciando supostos escândalos no Vaticano. Mas ninguém na mídia,
rigorosamente ninguém, teve acesso ao documento. Os jornais, no entanto,
entraram de cabeça no mundo conspiratório. Suposições, mesmo prováveis, não
podem ganhar o status de certeza informativa.
Escrevia-me, recentemente, um excelente jornalista. "Acordei hoje
cedo, li os jornais e me perguntei: sou só eu a me indignar muito com a
proliferação de "informações" inverificáveis, oriundas de
fontes off the record ou de documentos "sigilosos" sobre os
quais não há nenhum outro dado que permita verificar sua realidade e consistência?
Ninguém se questiona sobre tantos "furos", "obtidos" por
jornalistas que escrevem a distância "reportagens" tão nebulosas,
redigidas em uma lógica claramente sensacionalista? Ninguém mais se preocupa
com a checagem de informações, com a credibilidade das fontes?" Assino
embaixo do seu desabafo.
A enxurrada de matérias sobre abuso sexual na Igreja é outro bom exemplo
desses desvios. Setores da mídia definiram os abusos com uma expressão
claramente equivocada: "pedofilia epidêmica". Poucos jornais fizeram
o que deveriam ter feito: a análise objetiva dos fatos. O exame sereno,
tecnicamente responsável, mostraria, acima de qualquer possibilidade de dúvida,
que o número de delitos ocorridos é muitíssimo menor entre padres católicos do
que em qualquer outra comunidade. O conhecido sociólogo italiano Massimo
Introvigne mostrou que, num período de várias décadas, apenas cem sacerdotes
foram denunciados e condenados na Itália, enquanto 6 mil professores de
Educação Física sofriam condenação pelo mesmo delito. Na Alemanha, desde 1995,
existiram 210 mil denúncias de abusos. Dessas 210 mil, 300 estavam ligadas ao
clero, menos de 0,2%. Por que só nos ocupamos das 300 denúncias contra a
Igreja? Mas e as outras 209 mil? Trata-se, como já afirmei, de um escândalo
seletivo.
Claro que alguns representantes da Igreja - padres, bispos e cardeais -
têm importante parcela de culpa. Na tentativa de evitar escândalos públicos,
esconderam um problema que é inaceitável. Acresce a tudo isso o amadorismo, o
despreparo e a falta de transparência da comunicação eclesiástica. O novo
pontífice precisa enfrentar a batalha da comunicação. E o papa Francisco dá
toda a impressão de que está decidido a estabelecer um diálogo direto e
produtivo com a imprensa. O desejo de se reunir com os jornalistas na grande
sala de audiência Paulo VI foi muito sugestivo.
A Igreja, com sua história bimilenar e precedentes de crises muito
piores, é um fenômeno impressionante. E, obviamente, não é um assunto para ser
tocado com amadorismo, engajamento ou preconceito. A má qualidade da cobertura
da Igreja é, a meu ver, a ponta do iceberg de algo mais grave. Reproduzimos,
freqüentemente, o politicamente correto. Não apuramos. Não confrontamos
informações de impacto com fontes independentes. Ficamos reféns de grupos que
pretendem controlar a agenda pública. Mas o jornalismo de qualidade não pode
ficar refém de ninguém: nem da Igreja, nem dos políticos, nem do movimento gay,
nem dos fundamentalistas, nem dos ambientalistas, nem dos governos. Devemos,
sim, ficar reféns da verdade e dos fatos.
Há espaço, e muito, para o bom jornalismo. Basta cuidar do conteúdo e
estabelecer metodologias e processos eficientes de controle de qualidade da
informação.